Skip to main content

Colunas

Arquivos

Des Cult: Chaves.

| Sally | | 72 comentários em Des Cult: Chaves.

Eu tenho tanto para falar, que vou ser bem sucinta na apresentação, até porque, se você não conhece Chaves, acho que aqui não é o seu lugar. “Chaves” é um seriado que se passa em uma vila onde vários pobres estereotipados convivem em desarmonia, recheado de ironia e humor politicamente incorreto e violência física. Foi criado declaradamente inspirado nas favelas da América Latina e pelo visto, conseguiu retratar muito bem a realidade, já que foi sucesso em todos os países desta região.

O seriado Chaves começou a ser transmitido em 1971. Foi produzido até 1992, mas continua no ar até hoje, fazendo sucesso por quatro décadas. Estreou no Brasil sendo exibido no programa do Bozo, em 1984. Inicialmente o SBT tinha comprado apenas 13 episódios, os quais repetia à exaustão, por isso pessoas como eu sabem de cor alguns diálogos. Em seu auge, chegou a ser assistido por 350 milhões de pessoas.

Em 2011 completou a marca de quarenta anos ininterruptos no ar, por isso, pense duas vezes antes de falar mal de Chaves. Que outro programa tem esta vida útil? Sobretudo quando parou de ser gravado há vinte anos. Um programa que começou em 1971 ainda desperta risos, isso é quase um milagre. No Brasil é exibida pelo SBT e, salvo engano, pelo Cartoon Network. Foi sucesso não apenas no México e na América Latina, mas também em outros países como EUA e Espanha. Chaves chegou a ser exibido em 90 países.

Se você gosta do seriado, saiba que gostaria ainda mais se pudesse assistir no original. A tradução deixa bastante a desejar e vários aspectos bacanas foram cagados no processo de “brasileirização” do Chaves. A música de abertura, por exemplo, que era uma versão lúdica de uma música de Beethoven, virou “Aí vem o Chaves, Chaves, Chaves…”. O nome do personagem principal também foi modificado. O nome original era “Chavo”, uma gíria mexicana que quer dizer “menino”. Acharam melhor mudar para “Chaves” por ser um sobrenome relativamente comum no Brasil. Mas o pior foi a tradução, feita nas décadas de 70 e 80, extremamente minimizadas e politicamente corretizadas. O grau de ofensas na versão original é muito mais divertido e engraçado.

O nível era tão bacana que alguns episódios foram censurados no próprio México. Por exemplo, o episódio “Seu Madruga carpinteiro” tinha uma pancadaria tão feia que tiveram que refazer porque foi censurado. Por sorte o primeiro episódio existe e pode ser visto. Em outro episódio o Professor Girafales insulta seu Madruga chamando-o de Marlon Brando, envolvendo uma situação onde Seu Madruga abaixa as calças. Chaves também é cultura e faz referências que muitos não entendem. Essas pequenas referências culturais permitem que os mais diversos grupos assistam Chaves: desde aqueles que só entendem as tortas na cara até aqueles que viram “Último tango em Paris” e sabem entender ironias. Chaves é democrático.

Se você acha Chaves bacaninha mas parou de ver porque conhece todos os episódios de cor, saiba que tem novidade no mercado. Recentemente foram descobertos “episódios perdidos” de Chaves. Na verdade, eram episódios que não foram ao ar por causa de falhas técnicas nas fitas onde foram gravados, que impediam sua apresentação. Com o avanço da tecnologia, foi possível recuperar estas fitas e colocar estes “episódios perdidos” no ar. Alguns foram transmitidos pelo SBT e a maior parte deles pode ser encontrado na internet.

Na minha modesta opinião, o que encanta no Chaves é o tosco, o politicamente incorreto. Seu Madruga, além de ser caloteiro que não paga o aluguel, belisca sem dó o Quico, filho mimado da Dona Florinda e dá cascudos no Chaves. Todos ridicularizam o excesso de peso do Nhonho e Sr. Barriga. A idosa da vila é altamente sacaneada e chamada de Bruxa do 71. Chaves é um personagem amoral, que mente, furta e bate nos outros. Pópis, a menina fanha, é sacaneada sem piedade. Não existe o conceito de bullying, não existe essa paunocuzação de sociedade lucianohuckizada politicamente correta. Chaves agrada porque é verdadeiro, é honesto. Eles se ofendem, eles se espancam, eles passam a perna uns nos outros. Chaves é vida real sem aquele véu cor de rosa que dá o toque de merdas nas novelas globais. Chaves, o seriado, pode ser tosco, mas não é hipócrita.

A série começou como um quadro dentro de outro programa. Depois ganhou um espaço próprio. O sucesso da série deve ser creditado, em grande parte, a seu ator principal, Roberto Bolaños, que além de ator também é autor, escreveu todos os episódios. A historia de Bolaños é meio nebulosa. Inicialmente tentou ser jogador de futebol, porém não teve sucesso. Fofocas de bastidores contam uma história curiosa: ele começou fazendo um bico como datilografista, seu papel era digitar os roteiros manuscritos de alguns seriados. Estava encarregado de digitar o roteiro para um determinado seriado que estrearia em breve e, no primeiro dia de gravações o ator principal adoeceu e teve que ser afastado. Na falta de alguém que soubesse de cor todas as falas e já com os estúdios alugados e a equipe a postos, resolveram chamá-lo para substituir o ator, já que ele conhecia o teor do script. Assim, meio que sem querer, fez sua estréia na TV. Ao menos, é o que ele gosta de contar.

Há quem confirme, há quem desminta essa informação. Parece um tanto fantasiosa se a gente pesquisar e descobrir que Roberto Bolaños é sobrinho do ex-Presidente mexicano Gustavo Dias Ordaz Bolaños. Sobrinho de Presidente não costuma ter essas histórias de cinderela. Bolaños é carinhosamente chamado de “Chespirito” (o que inspirou um de seus personagens), significa um diminutivo de “Shakespeare”, já que, de acordo com os amigos, ele escrevia muito bem e era muito baixo: 1,62m. Era um pequeno Shakespeare. A vida real de Bolaños não merece ser dissecada aqui, ele não nem um pingo da inocência do Chaves. Um mero exemplo ilustrativo: participou de protestos organizados por grupos católicas conservadoras com o objetivo de manter o aborto como crime. Melhor deixar ele de lado (se for para falar da vida dele, vai ser em um Processa Eu) e voltar a falar do Chaves.

Os outros personagens foram escalados através do próprio Bolaños, que conhecia a maior parte deles. De todo o elenco que iniciou a série, apenas dois eram atores e tinham atuado antes: Ramon Valdés e Florinda Meza, respectivamente o “Seu Madruga” (que no original se chamava Señor Ramón) e Dona Florinda. Sim, ele manteve o nome dos atores nos personagens só de sacanagem com eles, piada interna. Maria Antonieta de Las Nieves, a Chiquinha e a Dona Neves (Doña Nieves) também teve seu nome real mantido em um dos personagens. O bacana é que Chaves é cheio de Easter Eggs que só eles conheciam. Por exemplo, a atriz Angelines Fernandez, foi convidada para trabalhar com ele no ano de 1971, daí surgiu o nome do seu personagem, a “Bruxa do 71”.

O ator Ruben Aguirre Fuentes, que interpretava o Professor Girafales, largou uma promissora carreira como alto executivo de um canal de televisão para realizar o sonho de atuar. Carlos Villagrán não era amigo de Bolaños, mas foi apresentado a ele mais a título de curiosidade, pois tinha o dom notório de inflar suas bochechas e todos achavam isso muito engraçado. Se conheceram em uma festa e Bolaños pediu que ele infle as bochechas, e, maravilhado com o resultado, chamou-o para integrar o elenco. O favorito de todos era Ramón Valdés, todos concordavam que ele possuía um talento acima do normal, seja para interpretação, seja para decorar os textos.

Ramón Valdés é um que merece comentários especiais. Era conhecido por seu senso de humor peculiar. Quando estava em seu leito de morte, era consolado por Carlos Quico Villagrán que, com lágrimas nos olhos lhe disse para ele não se preocupar, que eles se reencontrariam “lá em cima”, no céu, ao que foi interrompido por um grito de Ramón: “Céu? Tá maluco? Vamos nos encontrar lá embaixo, no inferno!”. Quando ele morreu, contam que Angelines Bruxa do 71 Fernandes ficou por horas chorando na frente do caixão, mesmo depois do sepultamento. Daí em diante, sua saúde definhou, e ela acabou falecendo algum tempo depois.

Os Easter Eggs não envolviam apenas os nomes dos personagens. Quase tudo que é dito e feito no seriado tem forte influência da vida real dos atores, já que o autor é casado com uma das atrizes e muito amigo dos demais. Bolaños conta que a inspiração para o choro do Chaves, por exemplo, veio de seus filhos, que choravam para dentro, dando a impressão de que estavam dizendo “pipipipipi…” quando choravam. Muitas das frases ditas também foram originalmente proferidas por seus filhos.

Quico saiu precocemente do seriado, em 1978 foram rodados os últimos episódios onde ele participa. Ou seja, os episódios que a gente via, que eram ainda com o Quico, eram, na melhor das hipóteses, filmados em 1978. E você achando que Chaves era uma série tosca e sem a menor tecnologia. Meus queridos, conseguir aqueles “defeitos especiais” em 1978 era muita coisa! Hoje os efeitos são risíveis, mas na época eram o que havia de melhor. Inicialmente, o ator Roberto Bolaños, que faz o Chaves, teve que pagar o cenário do seu bolso, porque o estúdio não levava muita fé nele, por isso aquele cenário tosco de papelão e isopor (nos capítulos mais velhos, o chão da vila é o chão do próprio estúdio!). Mas depois, quando perceberam o sucesso, começaram a investir.

Você deve estar se perguntando porque Quico saiu do seriado em 1978. A versão oficial é que ele queria fazer seu próprio programa. A versão verdadeira é que ele teve um caso com a sua parceira de cena, a atriz que interpretava a Dona Florinda, que por um acaso, era casada com o ator que interpretava o Chaves. O tamanho da merda foi tanto que ele teve que sair. Saiu e levou o ator que interpretava o Seu Madruga com ele, já que eram muito amigos. Bolaños e Carlos Villagrán ficaram 20 anos sem se falar. Depois disso, só se falaram em um programa de TV que reuniu o elenco para comemorar os 40 anos de programa, ou seja, formalmente e por dinheiro. O ator estava proibido de usar o nome “Quico”, que pertencia a Bolaños, seu criador, então quando saiu e partiu para um programa só seu, registrou o personagem como “Kiko”. Daí as duas grafias diferentes: Quico com Q é o Quico do Chaves, Kiko com K é o Kiko solo, pós-chifre.

A atriz que interpretava a Chiquinha também se ausentou por um tempo, mas oficialmente foi apenas por ter engravidado. Dizem que ela tentou fazer um programa só dela e se estrepou, mas acabou voltando. Mesmo assim, ela também teve seus desentendimentos com Bolaños, brigaram na justiça pelos direitos sobre a personagem Chiquinha. Em uma entrevista ela até atribuiu um enfarto que teve ao estresse por essa disputa. Parece que Bolaños se esqueceu de renovar os direitos da personagem por um engano e ela aproveitou e lhe passou a perna. Não sei se acredito nisso, ele força um pouco a barra. Declarou publicamente uma vez que escreveu o roteiro do filme “O Exorcista” e como não foi registrado, outra pessoa lhe roubou a idéia. O livro foi lançado em 1971 e o filme em 1973. Você acredita que sejam de autoria do Chaves? Eu não. Meio fantasioso.

Chaves foi e ainda é muito popular no Brasil. Era febre entre as crianças, hoje ganhou um aspecto mais cult. Seu autor conta que certa vez Pelé o procurou interessado em levar Chaves para as telas do cinema, mas ele delicadamente recusou (você confiaria em quem rouba dinheiro da UNICEF destinado às criancinhas?). Pelé teve que se contentar com um plano B e foi fazer um filme com os Trapalhões. Mas não foi só no Brasil que a fama do seriado ultrapassou tomou esta proporção. Na Colômbia, quando o governo determinou a suspensão da transmissão dos episódios de Chaves, a população organizou uma grande manifestação em Bogotá. A pressão foi tanta que tiveram que liberar o seriado novamente.

Produtores afirmam que aproximadamente mil episódios do programa Chaves foram gravados. Informações do SBT informam que eles possuem cerca de 200 episódios. Para quem gosta e quer ver mais, diversos episódios inéditos estão disponíveis na internet ou à venda na forma de DVDs. Existem alguns realmente impagáveis que nunca foram ao ar, curiosamente são os que pegam mais pesado. Acho que Silvio Santos escolheu os episódios mais leves para comprar (ou para exibir). Para quem gosta, eu recomendo. É um sopro de verdade e honestidade nesse mundo todo cagado por um padrão de comportamento hipócrita e moralista.

Tem tantas curiosidades sobre Chaves que eu precisaria escrever umas vinte páginas! Você reparou que ao longo dos episódios o nariz da Dona Florinda muda? Pois é, o processo de michaeljacksonização foi explicado pela atriz em off para amigos: quando ela era pequena sua mãe sofria de sérios problemas mentais e, no meio de uma crise, jogou um ferro de passar roupa na sua cara, quebrando seu nariz. Depois desse evento, ela teve sérias dificuldades para respirar durante muito tempo e por isso precisou se submeter a diversas cirurgias no nariz. Será?

Chaves acabou sem um “final” propriamente dito. Bolaños conta que ele pretendia fazer um episódio final trágico, onde o Chaves morreria atropelado ao tentar salvar a vida de um outro menino, mas foi convencido por sua filha, já adulta e psicóloga, que isso não seria muito bacana para a cabeças das crianças. Temendo o pior, inclusive suicido de alguma criança, ele desistiu da idéia.

Dentre toda a tsunami de violência e frases politicamente incorretas, eu tenho predileção pelas sábias palavras do Seu Madruga. Machista, preguiçoso, preconceituoso, ignorante e carismático. Era mal educado com sua vizinha, uma viúva com um filho pequeno. Frequentemente agredia físicamente o filho dela quando ela não estava por perto. Batia no Chaves, um menor abandonado. Fugia para não pagar as contas. Se recusava a trabalhar. Tratava mal a todos. Seu Madruga tem o espírito da República Impopular do Desfavor. Eu tenho várias camisetas com a cara dele, adoro.

Deixo vocês com algumas pérolas do Seu Madruga, dos tempos em que mundo era democrático e se podia dizer coisas politicamente incorretas pois se sabia que as pessoas não eram completamente burras e tinham cognição e discernimento para entender que se tratava de uma mera piada:

  • “A vingança nunca é plena, mata a alma e envenena”
  • “São todas iguais, primeiro amor, amor, amor! Depois vem a cacetada!”
  • “Minha senhora, se acha que pode me comprar com alguns presentinhos, eu vou lhe dizer uma coisa… eu aceito!”
  • “Eu sempre deixo as vagas de empregos para os mais jovens, e venho adotando essa nobre atitude desde os meus 15 anos!”
  • “Estou falando com a mula, não com seus carrapatos!”
  • “Quando a fome aperta, a vergonha afrouxa…”
  • “Por 100 mangos eu posso até ser a madrinha do casamento!”
  • “Com ousa me acordar às 10 da madrugada, Chaves?!”
  • “Sabe o que eu faço quando gritam comigo? Eu vou prá minha casa…”
  • “Não há luta pior do que aquela que se enfrenta.”
  • “Não existe trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar”

O que salva o seriado é que ele já é praticamente patrimônio cultural da TV, porque se fosse lançado hoje, certeza que teria protestos e processos tentando proibir sua exibição. A que ponto chegamos quando os programas exibidos no período da Ditadura Militar tinham mais liberdade de expressão e espontaneidade do que os programas transmitidos hoje. Reflitam.

Para dizer que mais derrota do que casar com o Chaves é ter um caso com o Quico, para dizer que minha cultura te entristece ou ainda para sair e dizer que não vai se misturar com essa gentalha: sally@desfavor.com


Comments (72)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: