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Ele disse, ela disse: Nada mais que a verdade.

| Somir | | 10 comentários em Ele disse, ela disse: Nada mais que a verdade.

To finance my war.Como já cumprimos nossa cota de escatologia semana passada, estamos livres para discutir um assunto mais cabeça. E vocês já sabem o que isso significa, não? Meia dúzia de comentários vagos…

Apesar de ambos trabalharem em áreas onde habilidade para mentir é requisito obrigatório, Somir e Sally discordam sobre a idéia de que uma mentira possa se validar de acordo com sua difusão. Ou, de forma mais simples…

Tema de hoje: Uma mentira repetida mil vezes vira verdade?

SOMIR

Sim. Uma mentira não volta no tempo para modificar fatos, mas quem disse que são apenas os fatos que formam nossa visão das coisas? A percepção da realidade é terrivelmente mais complexa do que termos absolutistas como verdade ou mentira.

Não sei se acontece com mais gente, mas em alguns dos meus sonhos eu tenho uma memória “paralela”. Essa memória é composta de outros sonhos antigos. Quando estou acordado, sei diferenciá-los exatamente da realidade e situar mais ou menos a época onde ocorreram. Mas no meio do sonho essas lembranças são reais. Tomo decisões e ligo os pontos como se fossem memórias “corretas”.

O que eu quero dizer aqui é que em um contexto (acordado) essas memórias são devaneios muito bem catalogados como tal, mas basta mudar esse contexto (sonhando) que vira tudo verdade.

A grande questão aqui é que a verdade absoluta não existe, e se existe é inalcançável. E isso é culpa do observador. Sejam bem vindos ao universo relativo.

Já escrevi sobre isso várias vezes, mas só para situar: Nossa percepção da realidade é uma série de ilusões e “gambiarras” muito bem organizadas pelo cérebro. Pesquise por ilusões de ótica no Google e veja com os próprios olhos que não precisa de muito para bagunçar essa percepção.

Essa percepção ilusória nos permite várias diversões e possibilidades únicas para um ser com raciocínio abstrato tão desenvolvido como o nosso, mas evidentemente também é uma “falha de segurança” no nosso sistema. Uma percepção sozinha está tão indefesa contra ilusões, ignorância e falsos positivos que a humanidade aprendeu a contar com as percepções alheias para formar um quadro mais confiável sobre o mundo que a cerca.

Duas cabeças realmente pensam melhor que uma. Se várias pessoas confirmam sua visão das coisas, suas idéias ficam mais protegidas. E de uma certa forma, essa é a base da ciência moderna: Testar hipóteses pelos mais diversos ângulos e percepções possíveis para garantir que não é apenas uma ilusão de momento.

Essa “terceirização” da realidade tem seus pontos positivos e negativos. É ótimo que não vivamos num mundo de autistas incapazes de conviver numa realidade minimamente comum, mas é péssimo que essa solução abra as portas para imposições e manipulações de ponto-de-vista. Não se pode ter o melhor de tudo…

Enfim, à mentira: Não existe um método 100% seguro de saber o que se passa na mente alheia. A diferença entre o relato correto de um fato e de uma alteração criativa depende da mente de quem recebe essa informação. E não podemos nos esquecer que temos aquela falha de segurança mencionada anteriormente.

Se a informação estiver errada, mas for plausível, pode ser tomada como verdade. O cachorro que peida na sala é um clássico. Cachorros peidam sem a menor cerimônia, pessoas tendem a se controlar. Os sentidos de quem sentiu o cheiro ruim não conseguem definir a origem mesmo…

Se a informação estiver errada, mas o contexto corroborar, pode ser tomada como verdade. O cara que volta para casa de madrugada exausto, mas que nunca aprontou antes, pode muito bem ter feito cerão mesmo. A patroa não estava com ele nesse tempo todo…

E quando temos o caso de uma mentira repetida exaustivamente, cria-se uma situação que pode vencer até mesmo provas supostamente irrefutáveis. A jogada é abusar da falha de percepção com o uso desonesto da solução mais comum. Usar a percepção alheia para confirmar o que real faz parte do nosso funcionamento básico. Se a pessoa não está segura sobre o que percebe como real, ganha MUITA força quem se mostra confiante. Se isso não fosse verdade, o discurso de autoridade não seria tão eficaz. Tenho CERTEZA sobre o que estou falando (Ha!).

Repetição funciona. Não estou fazendo juízo de valor, estou constatando uma tática histórica para perpetuar mentiras. É muito mais fácil quebrar uma pessoa e enfiar na cabeça dela idéias alheias do que gostamos de acreditar. Somos todos fortalezas mentais, não? Todos temos opiniões poderosas, todos nos imaginamos como os únicos olhando para frente numa multidão de pessoas encarando o chão, não é mesmo?

Pois é. Isso é mentira. Para que o rei não fique nu e a realidade não nos enlouqueça, precisamos repetir o tempo todo para nós mesmos que estamos enxergando direito, que não é tudo uma cortina de fumaça que ninguém consegue dissipar. Faz tão parte do que é ser humano passear de mentira em mentira que uma repetida e suportada por outras pessoas já parece um grande avanço.

Pessoas acreditam no que QUEREM e PODEM acreditar. Não pense que é apenas uma pessoa repetindo uma mentira várias vezes que configura exemplo para o tema de hoje; nossas experiências e relações, únicas, servem da mesma forma para repetir indiretamente uma mentira, às vezes antes mesmo de ouví-la. Uma pessoa criada por pais pertencentes à escória mística pode ter preparado em si todo o contexto para acreditar num avistamento de OVNI obviamente fantasioso. Uma mulher vinda de uma relação com um homem frio e distante pode acreditar piamente no Zé Ruela que diz que a ama dois dias depois de conhecê-la…

A verdade “absoluta” que Sally prega é uma mentira deslavada. E ela a repetiu tanto que agora acha verdade. Conceitos absolutos dependem de sistema fechados. Conheço o discurso de outros carnavais: Está todo contido na percepção pessoal dela. O texto a seguir é a minha prova “B”.

A prova “A”? Começa com “Re” e termina com “Ligião”. Vocês acham mesmo que num mundo onde a verdade fosse tão resistente assim à repetição uma babaquice dessas duraria mais do que algumas semanas?

A verdade já foi embora.

Para dizer que vai fingir que falamos sobre algo que se faz no banheiro para não passar em branco, para apontar uma contradição no texto que depende exclusivamente das mentiras que você vive ouvindo por aí, ou mesmo para dizer que a verdade é que eu enrolei, enrolei, e não disse nada: somir@desfavor.com

SALLY

Uma mentira repetida mil vezes vira uma verdade? Não. Uma mentira sempre vai ser uma mentira, repetição não faz com que a mentira vire verdade. Quão simples é a coluna de hoje? Tô quase postando outra receitinha aqui!

Uma mentira repetida mil vezes pode até virar uma verdade na cabeça do mentiroso, e só se ele for bem fudido da cabeça a ponto de acreditar na própria mentira, mas não vira uma verdade perante o mundo. Nem preciso vir aqui contar histórias de pessoas que mentiram, mentiram, mentiram até que foram descobertas quando menos esperavam, mesmo após milhões de repetições daquela mentira. Deus, o mundo, o destino ou como queiram chamar, conspira contra as mentiras. Uma mentira pode voltar para te infernizar anos depois de contada, por mais que você tenha repetido ela mil, duas mil, dez mil vezes!

E mesmo que a mentira nunca venha à tona para te atrapalhar, ela continua sendo uma mentira. Mesmo que ninguém saiba, a mentira está ali. “Se ninguém sabe, é verdade. A verdade é relativa”. Bonito no discurso, mas quero ver se um dia você descobre que seu marido ou a sua esposa fizeram ou fazem algo que você considera hediondo, insuportável, intransigível e vem mentindo para você mil vezes. Quero ver se o discurso apresentado para se justificar for “mas ninguém sabia, então era verdade”. Faz mal pros dentes fazer esse discurso, viu?

O que dói na mentira é a traição, a exclusão, a quebra da confiança. E todas estas coisas estarão presentes, ainda que ninguém saiba. Uma mentira não vira uma verdade pelo simples fato de ser repetida exaustivamente. Se fosse assim, não teríamos um mentiroso neste mundo. Quer saber? Muito pelo contrário. Na minha opinião uma mentira é AGRAVADA quando é repetida mil vezes. Quanto mais se mente, mais escroto fica. Ou agora repetição de mentira vai ser premiada?

Eu consigo entender a relativização de conceitos como “bom”, “mau”, “correto”, “incorreto” e outros tão subjetivos quanto. Eu até consigo entender que ALGUMAS mentiras sejam relativizáveis. Mas dizer que TODAS as mentiras viram verdade se repetidas mil vezes é de fazer doer a alma. Parece aquela coisa Bill Clinton: “Não fiz sexo com ela” até descobrir que ela tinha um vestido sujo de porra daí diz que não mentiu, apenas “não considerava aquilo como sexo”. Vai à merda, né?

Existem mentiras que não são nada além disso: mentiras sujas e escrotas. Mentiras egoístas. Mentiras covardes. Podem ser repetidas quantas vezes for que, por mais convenientes que seja, não viram verdades. E quase sempre elas voltam para te morder na bunda quando você menos espera. Pensar que só porque a mentira passou impune e foi consolidada após trocentas repetições ela virou uma verdade é auto-perdão e arrogância. Preto no branco, com este tema sou simplória: uma mentira é uma mentira e não vira verdade se for repetida muitas vezes.

Vamos pensar em termos práticos? Vamos pensar em grandes mentiras que foram repetidas para todos nós por anos e anos? História do Brasil. Só porque nos falaram aquelas balelas no colégio, nos fizeram ouvir, ler nos livros, anotar e responder na prova não quer dizer que sejam verdade. Podem ter sido temporariamente uma verdade para alguns de nós, eu sei que o mundo não gira em torno do meu umbigo e o que é verdade para MIM não necessariamente é uma verdade mundial. Era verdade para algumas pessoas, mas em um contexto maior, sempre foi uma mentira. E como tal, foi sendo descoberta. O fato de que EU babacamente um dia acreditei na maior boa fé em alguma coisa NÃO FAZ DELA VERDADE. Sempre foi uma mentira, mesmo para mim – só que eu não sabia. Desconhecer que era mentira não tornava aquilo uma verdade, pois ALGUÉM sabia que era mentira. Doeria menos se eu pudesse pensar o contrário, mas eu tenho problemas com auto-perdão.

Uma mentira repetida mil vezes é uma bola de neve que fica cada vez maior, e mais grave, por ter sido repetida tantas vezes. O fato da pessoa nunca descobrir não faz com que ela vire verdade, faz com que seja uma mentira oculta. Dizer que a verdade equivale a uma mentira oculta é um raciocínio torto. Uma mentira descoberta pode parecer uma verdade aos olhos do enganado, mas nunca será efetivamente uma verdade. O mentiroso sabe que ela é mentira, e a partir do momento que uma pessoa sabe que ela é mentira e geralmente outras pessoas também (é raro uma mentira que envolva uma pessoa só).

Não vamos confundir subjetividade com repetição. Existem situações onde a mentira ou a verdade podem ser subjetivas, como por exemplo aquele clássico exemplo do homem bebe industrialmente, chifra a mulher em um fim de festa qualquer e no dia seguinte não se lembra de nada e jura para ela que não ficou com ninguém (“que eu me lembre, não”). Ele disse uma mentira mas não estava mentindo. As circunstâncias criam esta distorção, e não a repetição da mentira.

Existem casos que são mentiras MESMO, de forma incontestável. Aquela mentira “Ontem eu fui dormir cedo porque estava me sentindo mal” seguida de uma foto em uma boate agarrado a um loira não tem relativização, não tem circunstância e não tem número de repetições que a validem. É mentira e ponto. Ainda que o interlocutor acredite. É mentira. E provavelmente vai ser descoberta.

Se você vê o mundo de dentro da cabeça dos envolvidos, posso até compreender que defenda a argumentação do Somir. Mas se você vê as situações de fora, em um contexto global, sabe que uma mentira é uma mentira mesmo que todo mundo acredite nela. Acho perigoso relativizar uma coisa grave como uma mentira. Jogos de palavras tem limites.

Para me chamar de burra e literal, para dizer que no fundo concorda comigo mas como soa mais inteligente concordar com o Somir vai ficar a favor dele ou ainda para dizer que concordar é um conceito relativo: sally@desfavor.com


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