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Flertando com o desastre: Pedrinho.

| Sally | | 73 comentários em Flertando com o desastre: Pedrinho.

Lá vem pedrada!Eu acho mais aceitável o traficante do que o usuário de drogas. Calma, não grite comigo AINDA. Não falo aqui dos grandes empresários que financiam o tráfico do alto de seus edifícios de luxo, falo do traficante “pequeno” no contexto geral, porém “dono do morro”, “grande” em seu contexto social. Sempre que faço esta afirmação pessoas começam a gritar comigo. Daí eu conto a história do Pedrinho, que é o que vim fazer hoje. Sei que tem muito bandido sádico e escroto por aí, mas também conheço o outro lado da moeda, que muita gente insiste em afirmar que não existe ou que é esmagadora minoria, talvez para tentar se enganar e não encarar o tamanho da injustiça que existe no nosso país.

Sempre bato na tecla de que costumamos ser mais benevolentes com aquelas situações onde conseguimos nos visualizar. Por exemplo, é muito mais fácil que uma mulher ciumenta entenda um homicídio cometido por uma esposa que flagrou seu marido com outra do que entenda um roubo. No entanto, o homicídio é um crime pior do que o roubo, ou alguém tem alguma dúvida de que tirar uma vida é mais grave de tirar uns reais de alguém? Nossa capacidade de perdoar está diretamente ligada à empatia e compreensão dos atos daquele que julgamos.

Acredito que seja este mecanismo que faça com que a maior parte das pessoas se solidarize mais com o usuário do que com o traficante. Quem de nós não conhece um usuário com uma história triste, que se afundou no vício e não conseguiu mais sair dele? Praticamente uma vítima. Ou então um usuário que é gente boníssima e “nunca fez mal a ninguém”. Claro, eles existem aos montes. Já o traficante… bem, este é sempre preto, pobre e favelado, tido como bandido que desperta antipatia. Ele é o causador de tudo, ele e apenas ele. É ELE que vicia nossos meninos e meninas. Nossos filhos são levados ao vício por culpa DELES, não tem nada a ver com a família, com a atenção que os pais dedicam ao filho, com a propensão genética ao vício e com outra série de fatores. São sempre os maus elementos que levam nossos filhos para o mundo das drogas. A culpa é sempre dos outros.

Porque tenho a cara de pau e a coragem de abrir a boca para defender determinados traficantes, a ponto de dizer que os prefiro a usuários? Primeiro porque adoro ver vocês nervosos nos comentários me esculhambando e segundo porque já vi coisas demais nesse meio para conseguir me convencer que nem todo traficante é um bandido cruel.

Quando a pessoa entra para o tráfico, nem sempre é para conseguir dinheiro para comprar tênis importado e roupa de grife. Nem sempre é ambição. Nem sempre é porque não quer trabalhar. Essa é a história fácil, a história conveniente, que todo mundo conta. Acontece. Porém na maior parte das vezes, é o desespero e a necessidade. E acreditem, vocês não mensuram o tipo de desespero que esse nosso povo passa. Só quem vive o dia a dia de comunidade sabe.

E a pessoa que começa a usar drogas? Porque começa? Geralmente por pura imbecilidade. Para parecer bacana, descolado. Para agradar aos amigos. Para desafiar os pais. Eu devo ser mais solidária a quem faz merda por pura imbecilidade ou por necessidade?

Vamos lá. O objetivo do texto não é provar que traficantes são boas pessoas nem defender o que eles fazem. Que fique claro: tráfico de drogas é crime, e tem que ser crime mesmo. Tem que ser punido SIM, mesmo que a pessoa seja de bom coração. É uma conduta errada e reprovável, porém, acho mais compreensível do que a conduta do usuário, o que não quer dizer que não tenha que ser punido. Não aceitem tão fácil essa imposição social de que o traficante é sempre o “Bad Guy”. Talvez você, no lugar dele, fizesse igual. Talvez você, sem uma criação onde te ensinem o que é certo e o que é errado, cruzasse com mais facilidade a linha do crime. Talvez você, em um momento de desespero, fizesse isso também. Honestamente? Eu COM CERTEZA FARIA.

Não adianta se colocar no lugar do traficante com a sua cabeça de hoje. Tem que pensar como ele foi criado, como é sua realidade. Quando você cresce vendo uma coisa acontecer com naturalidade, tende a não achar essa coisa tão monstruosa – por mais que seja. Quando você passa por certas necessidades, tende a esquecer a diferença entre o certo e o errado. Dizer que você não viraria traficante com a sua cabeça de HOJE, com a informação, valores e ética que você ganhou, é fácil. Eu também pensava assim, que nunca viraria traficante. Até o caso do Pedrinho. Ahhh o Caso do Pedrinho. Leiam com atenção.

No começo eu não queria pegar o caso, porque além de uma grande repercussão na época, casos de tráfico costumam ser perigosos. Mas, por um revertério do destino, me vi obrigada a atuar no caso de Pedro. O que me passaram foi: bandidão, chefe do tráfico no morro tal, matou um colega a pedradas. O que eu vi foi uma coisa bem diferente. Vocês sabem que eu não sou de passar a mão na cabeça dos outros nem de fechar os olhos para os erros alheios. E ainda assim, ainda sendo uma pessoa de julgamento rigoroso, o que eu vi foi outra coisa. Mas demorou para ver. Para ver, tem que querer ver. Mais: para ver, tem que PODER ver.

Pedrinho nasceu em uma família com um pai, uma mãe e cinco irmãs. Era o irmão mais velho. Quando Pedrinho tinha dez anos seu pai morreu baleado por policiais que subiam o morro onde ele mora. O pai de Pedrinho não era bandido, era pedreiro, e isso ficou comprovado no processo que julgou os policiais, mas os policiais não perguntaram antes de atirar. Nada de novo, a bala come e quem estiver no caminho que se foda, a vida humana não vale muito em algumas favelas. Os policiais foram absolvidos, porque foram julgados por outros policiais. Imparcialidade zero. Dois deles posteriormente se meteram em uma grande chacina de repercussão e acabaram presos, só para vocês verem o tipo de pessoas que eram. Depois da morte do pai, mãe de Pedrinho, que sempre ficou em casa cuidando das seis crianças, se viu obrigada a sair para trabalhar para sustentar seus filhos, com isso, seus filhos passaram a ficar longas horas sem a sua supervisão.

A mãe de Pedrinho também trabalhava o dia todo, mas ganhava apenas um salário mínimo para cuidar da família. Passavam dificuldades. Não raro passavam frio e fome. Pedrinho não conseguia nem estudar direito na escola, pois sentia fome. Mesmo assim, Pedrinho nunca fez nada errado e mesmo muito jovem, arrumou um trabalho e trabalhava todos os dias, de domingo a domingo. Por diversas vezes ofereceram oportunidade dele ingressar na “carreira” do tráfico, porque para quem não sabe, tráfico tem um “plano de carreira” onde você vai conquistando postos (e salários) cada vez mais altos. Pedrinho sempre recusou. Ele se pelava de medo de ser preso, nem tanto pela prisão, mas por decepcionar a mãe. Agora ele era o homem da casa.

A vida continuou, até que um belo dia a mãe de Pedrinho foi diagnosticada com uma doença crônica para a qual ela deveria tomar medicamentos diários. Caso não tomasse estes medicamentos, corria o risco de adoecer e até de morrer. Este medicamento custava caro e raramente era encontrado de forma gratuita, como seria de direito de sua mãe. O tempo foi passando, e sua mãe, sem ter acesso ao remédio, começou a piorar da saúde. Pedrinho tentou conversar com autoridades, pediu ajuda, foi a órgãos públicos, fez filas, mas ninguém podia fazer nada. Tomou um não por cima do outro por aproximadamente sete meses, tudo documentado. Também tentou conseguir outro emprego onde pudesse ganhar mais dinheiro, mas nada. Enquanto isso a mãe dele Piorou, piorou e piorou, até que, para desespero de Pedrinho, em decorrência da impossibilidade de tratamento, sua mãe ficou irreversivelmente cega, o que a impediu de trabalhar.

Quando voltava para casa com a mãe, Pedrinho se lembrou das palavras do médico. Sua mãe estava cega, para sempre, e se não começasse a se medicar, poderia morrer em poucas semanas. Pedrinho, com 16 anos, sentiu a obrigação de homem da casa pesar sobre ele e decidiu que era hora de ajudar a mãe, custe o que custar, porque afinal, se aquele Estado que deveria ampará-lo lhe virou as costas, ele também viraria as costas para o Estado. O salário que ele ganhava não era suficiente para arcar com o tratamento da mãe, ele sentia que não tinha escolha. Basicamente era isso ou deixar a mãe morrer.

Pedrinho procurou o “Dono do Morro”, traficante com nome de passarinho que mandava por ali. Há tempos que o Dono do Morro o convidava para participar de “esquemas”. Pedrinho sempre negava, ele não queria essa vida. Mas agora ele sentia que não tinha escolha. Pedrinho deixa de ser Pedrinho e passa a ser Pedro. Não podia ser chamado de Pedrinho, acharam que não combinava com a imagem necessária ao trabalho que ele ia desempenhar. Assim ele se iniciou no tráfico. Começou fazendo pequenos trabalhos não muito comprometedores em troca da medicação de sua mãe. Todo mês o Dono do Morro entrega um suprimento de medicamentos na casa de Pedro, sem atrasar um único dia, e paga todas as despesas médicas de sua mãe e suas irmãs. O que o Estado não dá, o Dono do Morro dá. Pedrinho, agora Pedro, não ganhava um centavo para ele, apenas remédio e suporte para sua família.

Com o tempo, Pedro foi sendo recrutado para tarefas mais complexas, porque era inteligente e esforçado. O Dono do Morro dava cada vez mais responsabilidades a Pedro. Nesse período Pedro pensou em sair dessa vida por mais de uma vez, mas as propostas de trabalho que tinha não eram suficientes para custear os remédios da mãe, e agora também de sua irmã, que manifestara a mesma doença da mãe, precisando do mesmo tratamento. Mais uma vez, ele sentia que aquela era a única porta aberta para ele. O preço do remédio e de todo o tratamento para duas pessoas era quase dez vezes o valor do salário mínimo.

Ok, ele poderia tentar um trabalho onde inicialmente fosse mal remunerado e tentar crescer profissionalmente em situações normais. Mas Pedro não tinha tempo para isso, pois um mês sem os remédios poderiam matar sua mãe ou sua irmã. Ele já carregava consigo a culpa da mãe ter ficado cega por falta de remédios, se cobrava ter entrado para essa vida antes, quem sabe assim a mãe anda poderia enxergar. Porque ser preso seria ruim para sua mãe, mas ficar cega e morrer seria pior. Além disso, Pedro tinha o compromisso de que, se fosse preso, o tráfico continuaria dando suporte à sua família. E eles cumprem. Pedro já tinha visto eles prometerem e cumprirem com diversos companheiros que acabaram presos. E se fosse morto, a família ganharia uma pensão vitalícia além dos cuidados médicos.

Pedro era extremamente religiosos. Quando perguntado como poderia fazer uma coisa condenada por Deus e ainda assim ser temente a ele, Pedro respondia que Deus estava vendo sua realidade e a de sua família e que quando o momento chegasse, Deus o absolveria porque saberia que ele não teve escolha. Deixar a mãe morrer desagradaria mais seu Deus do que entrar para o tráfico. Ele dizia que por mais que fosse errado, era menos errado do que deixar a mãe e a irmã morrer e se Deus fosse justo ele concordaria com isso. Além disso, Pedro nem achava tão grave assim o que fazia, afinal, eles não obrigavam ninguém a usar drogas. As pessoas é que iam ali procurá-los e usar porque queriam, do mesmo jeito que procuravam um bar para beber quando queriam encher a cara.

O tempo foi passando e Pedro agora era o braço direito do Dono do Morro. Sabia de todos os contatos, de todos os esquemas e estava a par dos negócios. Começou a ver, diariamente, como as coisas funcionavam na parte administrativa do tráfico. Era uma empresa, uma empresa com lucro de mais de 300% em cada transação. Era uma empresa com regras rígidas e castigos exacerbados.

Pedro lembra da primeira execução que viu, quando colocaram o dedo-duro preso dentro de um monte de pneus velhos, jogaram gasolina e atearam fogo. Pedro ficou chocado, chorou e ficou três noites sem dormir. Foi assim, nas três ou quatro execuções que se seguiram. Depois Pedro ficou calejado. Não porque seja mau, mas por ser humano. Da mesma forma como um Delegado de Polícia ou um Policial terminam por ficar calejados, brutalizados, menos sensíveis à violência. Da mesma forma que um médico fica menos sensível a sangue e ferimentos. O ser humanos se acostuma com tudo se for exposto a isso diariamente por muito tempo e sobreviver. Pode não gostar, não concordar, mas infelizmente acaba perdendo o poder de se chocar com aquilo. Sim, você também perderia. Pode até achar que não, mas perderia.

Pedro não gostava dessa parte de carnificina, mas sabia que nesse mundo era uma coisa necessária. Ele mesmo nunca botou a mão em ninguém nem fez nada, até o dia que ele chama “da desgraça”. Nem mesmo recebera ordens para isso, pois seus superiores brincavam dizendo que ele era “bonzinho demais” para coordenar esse tipo de atividade. Onde já se viu alguém que passa tanto tempo no tráfico e não tem uma morte nas costas? Pedro era até mesmo ridicularizado por isso. Porque no tráfico isso é demérito.

Um belo dia, o Dono do Morro sofreu um “atentado”. O traficante com nome de passarinho, amigão do peito de muitos jogadores de futebol que posam de certinhos (um deles habita o gol do Flamengo) é morto assim, do nada. Policiais a paisana se esconderam em uma casa vizinha e simplesmente armaram uma emboscada que matou o traficante com nome de passarinho. Mas ele já tinha nomeado Pedro como seu sucessor. No começo Pedro achou que isso era bom, mas logo viu que custaria caro.

Já na sua primeira semana teve que lidar com inimigos tentando disputar poder com ele. Pedro foi ameaçado, ou ele abria mão do “cargo”, ou algo de muito ruim aconteceria com sua família. Pedro não acreditou e pagou para ver. Essa gente vivia ameaçando e raramente acontecia alguma coisa. Mas Pedro não era o traficante com nome de passarinho, que operava barbáries, andava com armas banhadas em ouro e era amigo de jogador de futebol. Pedro não tinha essa moral toda para intimidar os vagabundos. Deu no que deu. Três dias depois sua irmã mais nova foi encontrada morta e estuprada.

Tudo se sabe na favela. Quem fez, não fez questão de esconder, mandou recado e deixou “assinatura” no local para que não pairassem dúvidas de que tinha sido ele. Pedro foi atrás do autor do crime. Quando o encontrou perdeu a cabeça e o atacou. Vendo que o sujeito ia puxar a arma, ele pegou o primeiro objeto que viu por perto e o atacou: uma pedra. Curioso que Pedro estava armado, mas não atirou. Apenas o atacou com uma pedra. Enquanto era atacado, o autor do crime riu e narrou detalhes o que havia feito com a irmã de Pedro, do que a irmã de Pedro havia dito ainda insinuou que ela teria gostado. Pedro surtou e bateu em sua cabeça com a pedra até que ele ficasse desacordado. O que Pedro não sabia é que ele não estava desacordado, estava morto. Ficou sabendo disso depois. Graças a esse episódio, ficou conhecido como Pedro Pedrada e ganhou o respeito dos colegas, tocando o “negócio” que tinha herdado.

Mas, para azar de Pedro, ele foi pego pela polícia poucas semanas depois, dedurado por traficantes de um morro vizinho, que queriam poder neste morro também. Pedro não tinha a maldade do traficante com nome de passarinho, não sobreviveu muito tempo. Pedro Pedrada virou manchete: “Traficante violento mata colega a pedradas”. Ganhou xingamentos de apresentadores de TV sensacionalistas. E nem vou contar da surra e das torturas que recebeu enquanto estava preso e aguardava julgamento. Mas também ganhou alguém que o defendeu e ouviu sua história até o final, com imparcialidade. E chorou. 

Para vocês, para o sociedade e para a imprensa, Pedro Pedrada. Para mim, Pedrinho.

Pedrinho não foi condenado por matar aquele infeliz. Infelizmente ele foi condenado no tráfico, porque, contrariando minhas recomendações, confessou que traficava mesmo. Ele disse que não se sentiria homem se negasse uma coisa que vinha fazendo. Eu avisei que seria condenado e ele disse que estava mesmo na hora de pagar as contas do que ele devia para a sociedade. Eu acho é que a sociedade pagou as contas do que fez com Pedrinho, quando ele virou traficante, mas tudo bem. Ele fez mal à sociedade? Sim. Em retorno.

Eu sei que muitos tem escolha, muitos seguem esta vida por sadismo, por comodismo, por índole ruim. Mas isso não apaga o fato de que muitos seguem por realmente não ter escolha, porque o Estado não garante o mínimo. E eu sei que fica mais fácil se a gente pensar que os que realmente precisam apelar para o tráfico por necessidade são minoria. MAS NÃO SÃO.

Já o usuário… bem, o usuário tem escolha antes de começar a usar. Porque ninguém é viciado antes de experimentar, certo? O usuário não tem necessidade de usar a droga se não a mãe fica cega e morre, certo? Qual é a desculpa do usuário? Bem, seja ela qual for, com certeza não chega aos pés da história de Pedrinho.

E para quem acha que o crime não compensa: hoje a facção de Pedrinho/Pedro Pedrada continua dominando o morro, resistindo às investidas dos traficantes vizinhos, e enquanto ele está preso, pagam pensão para a mãe de Pedro e para suas irmãs, não deixando faltar nada, nem remédios, nem comida, nem assistência médica. Mais eficiente que muito plano de saúde privado. O crime não compensa para o criminoso, mas para sua família sim. Deus não fica orgulhoso de quem se sacrifica e sofre para evitar o sofrimento de seus entes queridos?

Abram os olhos antes de qualquer linchamento moral, está cheio de bandido sem vergonha, mas também está cheio de Pedrinhos por aí.

Para tripudiar quem defende direitos humanos, para dizer que se eu fosse boa advogada ele estava solto ou para me esculhambar de qualquer outra forma para se livrar do inômodo que o texto causou em você: sally@desfavor.com


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