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Flertando com o desastre: Ocupação desordenada,

| Sally | | 32 comentários em Flertando com o desastre: Ocupação desordenada,

fotoPoderia ser um Desfavor Explica. Pensei em fazer um Desfavor Explica, com caráter didático, citando as diversas formas de aquisição da propriedade no direito brasileiro e explicando o porque de cada norma, explicando as regras de ocupação do solo urbano e também os mecanismos de regularização fundiária. Mas não vou, porque o que existe a respeito vem se mostrando INSUFICIENTE, então, não quero passar informação, quero TROCAR IDÉIAS para tentar ajudar a melhorar a situação urbana do meu Estado. É um assunto muito complexo para jogar juridiquês, além disso a opinião de vocês sobre os fatos concretos me interessa muito mais do que a opinião de vocês sobre a lei.

A regularização fundiária vem sendo muito discutida atualmente. O que fazer com pessoas que ocupam desordenadamente o solo urbano? Pessoa que constroem onde não pode, porque onde pode não cabe mais gente… o que fazer com eles? O primeiro impulso é o da remoção: “passa o trator por cima desses caras, eles não pagaram, não são proprietários”, dizem os leigos. Porque tem dessa. Já comentei isso aqui outras vezes. Direito é a única carreira onde leigos opinam com toda a certeza. Vê se alguém leigo em medicina chega e diz “não seria o caso de cateterismo e sim de uma safena, tenho certeza” para um cardíaco. Não diz. Mas quando se trata de lei, as pessoas tem a arrogância de achar que estas devem casar com SEU ideal de bom sendo. E não é assim, quando surge uma lei é porque existiu uma demanda social de interesse coletivo antes que compeliu o legislador (Florentina, Florentina, Florentina de Jesus…) a criá-la.

Então, antes de sair fazendo esse discurso anos 80 de “se não pagou não é proprietário”, ESTUDE. Não é isso que diz a lei. Antes da Constituição de 1988 era assim. Depois surgiu uma vírgula, uma ponderação, chamada FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. Em um resumo muito Bonner Simpson, isso significa dizer que, não basta pagar pelo imóvel, não basta ter comprado o imóvel, para que se tenha assegurado seu direito de propriedade. Além disso, é necessário dar uma destinação a este imóvel, ele deve cumprir sua FUNÇÃO SOCIAL, que seria, primordialmente moradia nas cidades e plantio no campo. Então, se você comprar um imóvel mas não der destinação a ele, o deixar abandonado por bastante tempo, está arriscado a perdê-lo para alguém que lhe dê destinação.

Antes que você comece a me chamar de comunista e feche o blog e vá ler a Veja, me escute até o final e me diga se não faz sentido. É fato que vivemos um excesso populacional no mundo. É fato que muitas cidades estão abarrotadas e não existem moradias suficientes para todos os seus habitantes. É fato que muito em breve pode ocorrer escassez de alimentos porque somos muitas boquinhas famintas para alimentar. Como pode um Estado nestas condições se dar ao luxo de manter áreas abandonadas? Acabou o pensamento individualista de “Foda-se, eu paguei, é meu, se eu quiser eu deixo abandonado, eu taco fogo ou eu faço um show do Fábio Jr. no imóvel”. Não, o Estado interveio e decidiu que existem limites em nome do BEM ESTAR DA COLETIVIDADE.

Tudo bem, agora você não me acha mais comunista, me acha uma cruza de Pollyana com um Teletubbie retardado. Mas acredite, há real necessidade de começar a se preocupar com isso. Uma pessoa sem moradia é uma pessoa que pode colocar uma arma na sua cabeça, na cabeça do seus filhos ou dos seus pais no meio da rua. Uma pessoa sem moradia não tem os direitos mais básicos, nem mesmo direito a crédito. Além disso, moradia é um direito fundamental assegurado pela Constituição. Se a pessoa não tem, o Estado deve assegurar este direito. EVIDENTE que isso não acontece, sabe como é, aqui é Brasil. Até entendo o Estado não dar moradia a todos os que precisam. O que eu não entendo é ver o povo batendo palmas para quando o Estado não apenas não dá como ainda tira. Cabecinha anos 80, só é seu se você comprou e pagou por ele.

Pois eu tenho uma novidade para vocês: a compra é apenas UMA das muitas modalidades de aquisição de bens imóveis (se estiver curioso e quiser aprofundar, art. 1.238 e seguintes do Código Civil). Existem outras formas. Uma delas trata de um instituto chamado usucapião. Por favor, jamais digam usucaMpião, esse M não existe e eu quase tenho um AVC quando escuto usucaMpião. Antes que você comece com seu discurso que a lei brasileira só serve para recompensar vagabundo, me deixe explicar até o final. Apague da sua mente aquela imagem de um grupo do MST entrando em uma fazendo com foices e expulsando o proprietário. Não é nada disso.

O que diz a lei, em uma simplificação muito grosseira, porque é um assunto cheio de regrinhas e detalhes, é que se um imóvel estiver abandonado por muitos anos (na melhor das hipóteses, pelo menos cinco anos e na pior por quinze anos) e se ele for ocupado atendendo a uma série de regras (por exemplo, o proprietário não pode ter reivindicado o imóvel em momento algum de volta) que só beneficiam quem realmente tem uma necessidade (por exemplo, não tem direito quem já for proprietário de outro imóvel) real e boa-fé (por exemplo, a ocupação não pode ser fruto de violência, não pode ser escondida ou disfarçada nem pode ser enganando ou coagindo o proprietário).

Eu lhes asseguro que é praticamente impossível que um “vagabundo” se beneficie com isto. A pessoa tem que estar residindo no imóvel por, pelo menos cinco anos (entre cinco e quinze, dependendo do caso) e deve comprovar isso. A pessoa tem que estar cuidando do imóvel. A pessoa tem que cumprir uma série de requisitos formais e pessoais que impedem qualquer armação. Caso o proprietário queira impedir isto, existe um processo judicial rigoroso onde o proprietário é ouvido e pode se defender, apresentar provas. Não é A La Fidel Castro, “Perdeu Preibói” e toma tomando o imóvel do cidadão.

Pense comigo, se uma pessoa é dona de um imóvel e o mantem abandonado (e abandonado é nem sequer pisar nele, por exemplo, um imóvel com um caseiro não está abandonado!), a ponto de uma família se instalar e ali permanecer por FUCKIN´ CINCO ANOS e o proprietário não mover uma palha para tirar eles de lá, é sinal que ele está cagando solenemente para este imóvel. O mundo está abarrotado demais de gente para que um ser humanos possa se dar ao luxo de adquirir um imóvel e deixá-lo trancado, abandonado por anos e anos a fio. ERA um direito fazer esse tipo de coisa, hoje não é mais. Da mesma forma que era um direito do Estado prender, bater e torturar e hoje não é mais. Então, se uma pessoa tolerou outra família morando no seu imóvel por tanto tempo, sendo que isto poderia ser facilmente constatado com uma mera visita ao imóvel, sinal que, tacitamente, está abrindo mão do seu direito de propriedade. Não quer perder seu imóvel? Cuide dele. Se você flagrar uma família morando no seu imóvel antes que eles completem pelo menos cinco anos no local, pode retira-los imediatamente com uma ação judicial.

Quer se divertir mais um pouco? Primeiro que a palavra usucapião é FEMININA, sim, é A usucapião (a prescrição aquisitiva). Segundo, ela se da pelo mero decurso do prazo, a sentença judicial apenas declara uma coisa que já está consolidada. Ou seja, se você preencher os requisitos e passar cinco aninhos sem ser importunado pelo dono em um imóvel abandonado, JÁ É DONO, mesmo sem ação judicial. Realiza quanto dono de terreno tem por aí. Agora quer rir mais ainda? As terras públicas não são passíveis de usucapião. Só as particulares.

Eu queria falar de outras formas de aquisição da propriedade para que vocês entendam todas as modalidades, mas sabe como é, quatro páginas. Isto foi só para ver se ao menos alguns param de repetir que lei brasileira beneficia vagabundo e dá terra de graça para qualquer um que entra na casa dos outros. Não é assim que a banda toca, não repita isso ou fará papel de ignorante.

Em área particular não tem conversa: acaba virando proprietário. O grande problema surge quando as pessoas ocupam áreas públicas, que não podem ser usucapiadas. Daí surge o dilema do Poder Público: regularizar ou remover? Hoje em dia, nem um nem outro: tocam a pessoa para fora e pagam o chamado “aluguel social”, que na verdade tem previsão legal para situações transitórias de caráter emergencial e vem sendo usado como solução definitiva, gerando uma massa que ganha mesada, tipo bolsa-moradia, INSUFICIENTE (cerca de R$ 300), ou seja, onera os cofres públicos e as pessoas continuam sem teto para morar. Isso tem que mudar. Mas como? O que fazer? E tenho um sonho… mas ele não cabe aqui porque o Somir é um tirano fdp que me obriga a escrever só quatro páginas. Fica pra próxima.

Vamos para outra polêmica: área de risco. Todo ano desaba casa com gente dentro no Rio de Janeiro. Todo ano as autoridades culpam os moradores que construíram barracos ali. O que o Município esquece é que tem competência para vigiar e gerir o solo urbano, portanto, é seu DEVER impedir estas construções. Em vez disso, o Município faz vista grossa e ainda cobra IPTU, como fez com os moradores do Morro do Bumba, que desabou todo no ano passado (lembram?). E por força de lei (vale para o Rio de Janeiro, desconheço como é no resto do país), em caso de remoção de comunidades já consolidadas (aquelas que estão no local por anos), é preciso que se providencie o reassentamento em local próximo, ou seja, no mesmo bairro. Já que o Município não cumpriu sua função de fiscalizar e impedir estas construções, não pode punir as famílias jogando-as em locais distantes, o que afastaria as crianças das escolas nas quais estão matriculadas, os pais de seus trabalhos, etc, etc. Daí eu te pergunto: como reassentar os mais de cem mil moradores da Rocinha no bairro de São Conrado? VOCÊ ACHA que um dia o Município vai dar casa para cem mil pessoas em São Conrado?

Claro que estão tentando mudar essa lei. Imagina se isso vai ser colocado em prática no Rio de Janeiro, onde todo bairro, por mais rico que seja, tem ao menos um morro com uma favela por perto. Negativo. Ninguém quer favelado morando ao seu lado no asfalto. Então, o que fazer? A Constituição diz que é obrigação do Estado assegurar o direito de moradia a todos, a lei diz que o Município deve fiscalizar e coibir imediatamente qualquer ocupação em áreas de risco e na prática o Município vai lá e em vez de remover cobra IPTU deles. O que fazer? Passar o trator e jogar 10 mil, 30 mil famílias na rua? Isso vai ser bom para a sociedade? Será que isso não vai aumentar a violência urbana, o número de crimes? Anota aí: não dá para viver BEM em um MUNDO QUE NÃO ESTÁ BEM. Não vai achando que porque você fez o seu tudo vai ser lindo. Quando o mundo está uma merda, a merda chega na gente. O que fazer? As autoridades não sabem. Eu tenho sugestões, mas quero ouvir as de vocês.

Tem também outra polêmica: gente x meio ambiente. Complicado. Tirar uma pessoa para o passarinho poder morar é dose. Mas ao mesmo tempo, tem o outro lado: se a gente foder muito com a natureza, ela vem e se vinga, e quando a fúria da natureza dá um “oi”, não escolhe classe social. Por mais que eu odeie a natureza, sei que precisamos dela para nos manter vivos. O que fazer com pessoas que ocupam áreas que são consideradas de proteção ambiental? E gente que ocupa aquela área há décadas? E se forem índios, que ocupam a séculos e só sabem viver ali? (para quem não sabe, índio desmata e extingue espécies pra cacete, tá? leiam “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil” – Leandro Narloch, ajoelhados no milho!). E se o Estado autorizou a pessoa a morar ali em uma época que não havia essa noção de ecologia mas agora descobriu que pode ser prejudicial, o que faz? Remove? Tem que dar outra casa? Eu sei que tem muitos amantes da natureza aqui, mas não me desce tirar gente para bicho poder morar e planta poder crescer. Foi mal. Não que eu ache que tenhamos que destruir o planeta, sei lá, faz uma compensação ambiental e planta um zilhão de mudas de árvores em outro local para tentar reequilibrar a situação, mas gente vale mais do que bicho. Bem, quase sempre…

Temos ainda outra grande polêmica quando se trata de ocupação desordenada dos grandes centros urbanos: como convencer as pessoas de que cidades como Rio e São Paulo são lugares abarrotados, escrotos, violentos, sem emprego e com custo de vida impossível quando a porra da TV mostra novelas ambientadas no Leblon ou nos Jardins onde tudo é belo? Alguém precisa incentivar a migração para o campo, tornar aquilo de alguma forma atraente para o trabalhador, tanto econômica como esteticamente. Tô falando sério, mais ninguém quer plantar. Se continuar assim nossos bisnetos só saberão o que é uma alface através de fotos. Vai prejudicar todo mundo, os meios de comunicação bem que poderiam se tocar disso antes que seja tarde e promover uma “glamourização” do campo, remunerando decentemente o trabalhador rural para que ele não passe fome e largue tudo para correr atrás da ilusão da cidade grande.

Acabou o espaço e eu não falei nem 10% do que queria. Ainda volto nesse assunto em outra postagem. Opinem, por favor. A troca de idéias da postagem de hoje é muito importante para mim.

Para dizer que eu sou comunista e Teletubbie ao mesmo tempo, para dizer que já que eu falei em usucapião deveria ter falado também em desforço pessoal ou ainda para perguntar se Somir volta mesmo no mês de fevereiro: sally@desfavor.com


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