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Flertando com o desastre: O bom selvagem.

| Somir | | 33 comentários em Flertando com o desastre: O bom selvagem.

Depois que tirar a foto, devolvam as roupas!ANTES TARDE DO QUE NUNCA: É um daqueles meus textos sérios que normalmente rendem dois ou três comentários consistindo de reclamações sobre a chatice do assunto. Se vier pentelhar depois desse aviso, eu vou rir da sua cara.

Em época de campanha eleitoral, temos várias oportunidades de ver um dos mais batidos clichês de comunicação em massa: O pobre bonzinho. Sabe aquela cena clássica da criança morena desdentada sorrindo com uma favela ao fundo? Aquela cena do agricultor animado por estar todo sujo na frente de uma plantação? Aquele pedreiro super feliz fazendo um jóia para uma câmera em movimento?

Todas imagens preparadas para manter a ilusão de que o brasileiro, por mais na merda que esteja, é um povo dócil e feliz por natureza. Claro, não temos cenas de milionários sorrindo em seus iates enquanto modelos semi-nuas servem seu champagne… Afinal, apesar de também serem brasileiros, essa gente só pode ser feliz longe dos programas eleitorais.

É uma espécie de regra não-escrita da convivência social. Tente não exibir a felicidade inerente à riqueza na frente da criadagem, ou as coisas podem sair de controle. É útil para a parcela desprivilegiada da população a noção de que eles podem viver muito bem sem nada do que desejam, e especialmente útil para quem não quer dividir sua riqueza.

Eu já escrevi várias vezes sobre isso, mas não custa relembrar: Por mais que te incomode ou mesmo doa saber, dinheiro COMPRA felicidade. Não é condição obrigatória, mas é o melhor começo possível. Acreditar que rico não é feliz não passa de uma mentirinha social que te alivia um pouco a percepção da inevitável desigualdade entre poderes de realizar desejos. É tão valiosa essa auto-enganação que eu tenho certeza que até mesmo se você acreditar nisso, logo logo consegue se convencer que as coisas não são bem assim.

Não pretendo apenas tentar colocar alguém em depressão com este texto, embora eu vá me divertir se acontecer, o que eu quero é apontar como essa diferença entre pobres e ricos é COMPRADA, como se fosse um produto qualquer. Sei que parece óbvio, mas não é bem assim que as coisas funcionam no inconsciente coletivo.

Explico:

A humanidade deve muito de sua evolução à incrível capacidade do cérebro de categorizar informações e reconhecer padrões. Isso faz parte de como enxergamos e interagimos com o mundo. É uma das bases da nossa inteligência.

Por isso, ninguém precisa ser ensinado a perceber diferenças entre grupos de pessoas. E mais do que isso, é relativamente fácil reconhecer a que grupo você pertence. Uma pessoa pode ser categorizada por diversas características, mas historicamente a mais importante tem a ver com a quantidade de riquezas à sua disposição. E por riquezas entenda qualquer coisa que outras pessoas também desejam, mas que exista em escala limitada.

Em escalas diferentes, temos ricos e pobres em praticamente qualquer sociedade organizada na história desta espécie. É tão fácil se posicionar nessas categorias de escassez e abundância de riquezas que virou padrão.

Só que com essa organização, surgem outras questões, também compreensíveis pela forma como “funcionamos”. A partir dessa categorização, surge o preconceito, o julgamento do todo pela parte. Preconceito que por si só não é a parte ruim, e eu já escrevi sobre isso em uma coluna nos primórdios do desfavor. O preconceito evita a enlouquecedora idéia de julgar cada indivíduo separadamente. (O espaço para memórias no cérebro não é infinito…)

Chegamos assim à necessidade de aplicar uma idéia geral para um grupo no qual se está inserido. Ou, em termos mais simples: “Diga-me com quem andas e te direi quem és.”

Quando o cidadão precisa se definir a partir do grupo que representa, é óbvio que ele vai tentar, mesmo que inconscientemente, se valorizar. E isso vai exigir uma valorização geral para funcionar. “Se eu faço parte do grupo X, o grupo X tem que ter as qualidades que eu quero ter.”

E além disso, para reforçar ainda mais essa idéia, a tendência é que se aplique conceitos negativos para outros grupos. “Eu tenho essa qualidade porque faço parte do grupo X, se estivesse no Y, não a teria.”

Por exemplo: Numa guerra, um soldado diz que está lutando por um ideal ou pela liberdade do seu povo. Muito embora na maioria das vezes sua função seja matar qualquer coisa com um uniforme diferente do seu. E se questionado sobre o inimigo, vai dizer que ele está defendendo uma bandeira maligna ao invés de reconhecer que é mais um pobre coitado forçado a estar ali.

E é assim que se forma a visão frequentemente fantasiosa sobre o grupo no qual se está inserido e o afastamento psicológico de outros grupos. Uma coisa alimenta a outra.

Dessa forma, fica um pouco mais simples viver nesse mundo. Se as pessoas não se acalmassem em seus grupos, muitas vezes impostos pela vida, o caos seria inevitável. E as ferramentas de controle, notavelmente a religião, tem seu papel de incentivar e exacerbar esse comportamento.

“Pode ficar tranquilo, eu te pago assim que você morrer.” Incrível como isso colou, não?

De qualquer forma, falo sobre a forma como nos categorizamos para chegar ao cerne da questão, pelo menos da questão deste texto: Pobres não são mais humanistas, generosos, honestos ou dóceis do que os ricos. Mas precisam acreditar nisso para não se sentirem totalmente inferiorizados socialmente.

E como essa auto-imagem evita revoluções e vende muito bem, é enfiada goela abaixo de todo mundo, sem distinção. A política do correto não permite que se discuta isso, é claro. Quando eu digo que toda essa frescura de passar a mão na cabeça de minorias (em questão de poder) e impedir a expressão honesta do pensamento é uma das armas CONTRA a igualdade, me chamam de elitista insensível… Liberdade de expressão tem que ser uma coisa desagradável para todos aos mesmo tempo. Mas eu entro nesse ponto num outro texto.

Temos a mentira agradável (pobres são pessoas melhores), temos a separação entre grupos (ricos não podem participar dessa imagem), e temos uma proteção social contra críticas ao modelo (“ai, Somir, que coisa horrível de se dizer…”).

Tudo no seu devido lugar. Funcionando maravilhosamente bem para manter os pobres “no seu devido lugar”.

Imagino que algum leitor “socialista de botequim” vá achar que eu finalmente vi a luz, que uma revolta popular e uma tomada de poder pelo proletariado seja a solução para os nossos problemas.

Pois é… não. Seria trocar seis por meia dúzia que não estudou muito. A questão é que quem está no poder é exatamente tão podre quanto quem não está.

Grandes revoluções nesse sentido só provaram que subir muita gente de classe social e esperar a manutenção da igualdade “forçada” não funciona a longo prazo. Egoísmo e ganância estão no âmago do ser humano. Não bate bem com a mente média a noção de que um esforço pessoal não seja recompensado na proporção que julga correta. Tecla SAP: Neguinho fica puto se trabalha mais que outro e ambos recebem a mesma recompensa.

Riqueza é “comprada”, não um gene encontrado no DNA de algumas pessoas. Um governo liderado por populares seria tão corrupto e ineficiente quanto os outros. Essa coisa de categorizar e atribuir valores para grupos pode até ser eficiente para vida do dia-a-dia, mas na prática é só um conjunto de mentirinhas nas quais gostamos de acreditar.

Mesmo que não seja uma boa coisa. Do jeito como o mundo funciona, riqueza e pobreza são quase como que “genes sociais”. Vão passando de geração em geração sem muitas trocas entre os grupos.

Assim como muita gente não escolheu ser pobre, também não escolheu ser rica. Isso nasce com a pessoa, e fazer pré-julgamento sobre alguém baseado numa característica que NÃO SE ESCOLHE tende a ser mal-visto na nossa sociedade. E com justiça: Esse mesmo tipo de categorização preguiçosa criou o racismo e a intolerância. É cruel julgar alguém por uma característica que não se escolheu. (Assim como é ridículo se gabar por isso…)

É uma forma de preconceito negativo fortalecer essa fantasia de que riqueza é incompatível com altruísmo ou valores humanistas.

E não se anime, Chiquinho Scarpa, estou pleiteando meu direito de desgostar da humanidade como um todo, ao invés de ter que ficar escolhendo um grupo ou outro, como é o de costume. Basta prestar um pouco de atenção para perceber que somos essencialmente a mesma coisa, com diferenças na maioria das vezes puramente estéticas.

Imagine uma foto na revista Caras: Luciano Huck passeando com seu Jet-Ski na praia particular em frente à sua mansão em Angra. Na legenda: “Eu sou uma pessoa muito esportiva, nem tirei o meu Rolex.”

Agora, imagine uma foto no álbum do Orkut: Wanderclêidison fazendo pose na sua moto velha na rua da frente da sua casa na periferia paulistana. A legenda: “E facil fla de mim mais dficil msm eh ser eu”.

A diferença É cosmética. Ambos estão apelando para o mesmo público limitado do ponto de vista intelectual. Uma pessoa pobre ou rica com um pouco de cultura simplesmente não se importa com uma babaquice dessas. O mesmo vale para a modelo na capa de revista e para a pobre fazendo pose sexy no puxadinho. É a mesma mentalidade. Para o bem e para o mal.

Uma reversão de poder entre os atuais ricos e os atuais pobres seria puramente estética também. São as mesmas pessoas em “estados diferentes da riqueza”. Diferenças óbvias de ambiente que ditam essas supostas diferenças de valores.

O cidadão que já está lá embaixo na “cadeia alimentar financeira” não tem nem OPORTUNIDADE de segregar alguém em condição pior. É muita inocência atribuir uma qualidade a quem não pode ser testado.

A verdade é que a nobreza do altruísmo é resultado de inteligência social e/ou emocional bem desenvolvida. Não que se precise fazer um curso superior para se tocar que há um mínimo de doação para a sociedade essencial para o funcionamento do mundo. Mas que é um conceito bem mais complexo do que parece, é sim. A maioria das pessoas, independentemente de condição financeira, passa longe de entender o que é isso. Essa forma de ignorância é extremamente democrática.

Principalmente porque essa idéia exige se afastar do confortabilíssimo conceito de jogar na conta de outros grupos a culpa pelos problemas percebidos.

“Os pobres são boas pessoas, mas não estão no poder. E para deixar de ser pobre, tem que deixar de ser boa pessoa. E eu quero ir para o Céu, sabe?”

Realidade: Os pobres são pobres, os ricos são ricos e a humanidade tem muito pouca gente que realmente se importa em resolver problemas e melhorar a qualidade de vida geral. Não tem revolução social dramática que aumente a inteligência média da população a curto prazo, e por isso, não tem revolução social dramática que resolva os problemas desse mundo.

Mas, enquanto for bonitinho mostrar pobres felizes POR SEREM pobres, vamos encarar essas campanhas ridículas e os governos medíocres erguidos por elas. Afinal, mudanças reais demandam tempo e sacrifícios, e ninguém parece muito afim disso.

Para dizer que é masoquista e leu mesmo depois do aviso, para me parabenizar por realmente não dar a mínima para o público, ou mesmo para dizer que eu sou um burguês maligno (apesar de pobre…): somir@desfavor.com


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