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Intimidação feliz.

Intimidação feliz.

| Sally | | 35 comentários em Intimidação feliz.

Existem muitas formas de oprimir um funcionário, porém, as mais comuns já estão tão popularizadas e mal vistas que costumam render processos e indenizações. Era preciso inovar. Fazer um funcionário ou um empregado se calar na base do grito ou abortar um questionamento na base da ameaça de demissão já são suficientemente mal vistos para representar um risco ao empregador. Então, em uma tendência mundial, resolveram inovar: a intimidação pela obrigação de ser feliz e alto astral. Na semana que se passou ouvi não um, mas três relatos diferentes sobre essa nova modalidade de intimidação feliz. Parece que está virando tendência.

Em uma coroação desta grande era de obrigação de ser feliz na qual vivemos, a opressão alto astral chega ao mercado de trabalho. Não bastava ter que aparentar uma vida 100% feliz em rede social, um relacionamento feliz full time, é hora de estender esse inferno para o local de trabalho.

Toda empresa adora se dizer inovadora e com funcionários felizes. E se você não for feliz o bastante, algo como, digamos, um Teletubbie que toma Prozac, bem, cuidado: você pode não ter o perfil da empresa. Isso mesmo, independente das suas habilidades técnicas, não correr com a manada em matéria de alegria, hoje em dia, causa demissão. O pior é: ninguém nem vai lamentar sua demissão, pois será vista como algo para o bem do grupo. Tratem de inserir alegria e alto astral no currículo de vocês, essa moda veio para ficar, pois é muito conveniente para todos os empregadores.

Óbvio que é tudo uma grande hipocrisia. Seu chefe terá todo o direito a ter um dia de fúria (inclusive voltado contra você, se o desejar), reclamar e ficar de mau humor. Mas não o funcionário. Será que a empresa zela mesmo pelo suposto ambiente de trabalho feliz ou será que estão te intimidando, pois pessoas felizes não reclamam, não pedem aumento e não conspiram?

No mundo de hoje, uma pessoa que se mantém alegre na maior parte do seu tempo ou é alienada, ou está muito quebrada por dentro e precisa disfarçar a qualquer custo. Sempre desconfiei de pessoas excessivamente alegres. Quão emburacada a pessoa está por dentro para precisar exalar sempre uma grande alegria por fora? Ninguém está o tempo todo feliz e vou além: felicidade é a exceção, não a regra. Escroto querer que acreditem o contrário, cria um exército de pessoas que se sentem inadequadas e se enchem de remédios por pensarem que tem algo errado com elas. É perfeitamente normal não estar feliz e alegre o tempo todo.

Sentia um pouco de pena dessas pessoas, pois fica nítido o mecanismo de defesa, de exalar uma alegria contagiante porque se deixar a peteca cair, vai, na melhor das hipóteses, à depressão e na pior ao suicídio. Pessoas que precisam se convencer de que são felizes e alto astral tem sérios problemas, quando uma pessoa precisa ostentar muito alguma coisa, é sinal que tem algo quebrado do lado de dentro. Como essa gente tem severos problemas emocionais e zero estrutura para lidar com pressões da vida, vive na beira do abismo, precisa desse recurso.

Reparem que no parágrafo anterior eu disse que sentia pena destas pessoas. Sentia, do verbo “não sinto mais”. Percebo um processo ainda embrionário de tirania da alegria por parte delas, não na tentativa de deixar o mundo ou o ambiente de trabalho melhor e sim na tentativa de calar a boca dos que estão à sua volta ou de não intimidar para não ter que ouvir/lidar com problemas por não ter a menor estrutura para isso.

Uma pessoa instável, que não é muito segura de si e boa gestora, não sabe lidar com problemas, divergências e confronto. São pessoas que, apesar de uma bela pose de segurança por fora, são frágeis como cristal por dentro. Obviamente essa fragilidade não combina com liderança nem com mercado de trabalho, então, ela deve ser camuflada a qualquer preço. Como não é mais socialmente aceito calar a boca de um funcionário insatisfeito ou resolver conflitos na base do bullying ou assédio moral, estas pessoas fodidas por dentro encontraram uma nova forma: obrigação social de ser feliz, sob pena de não ter o perfil da empresa, carimbando inadequação na testa do funcionário e colocando-o até em risco de demissão.

Com isso o funcionário passa a se sentir constrangido de manifestar qualquer descontentamento ou de levar a seu gestor qualquer situação de conflito ou problema. Frases como “Você sempre reclama” e “Talvez o problema seja você” voltam para morder na bunda quem ousa destoar da felicidade Teletubbie vigente. Leve problemas a seu gestor e o problema passará a ser você. O mais medonho deste comportamento é o grau de manipulação que ele gera: pessoas que estão com razão não tem o direito de questionar, se aborrecer ou buscar melhorias pois a prioridade, acima de tudo é um estado de permanente felicidade, euforia e alto astral.

“Alto astral”. Como eu odeio essa palavra. Me remete à Xuxa. Uma expressão infantilizada que vem sendo usada cada vez mais para oprimir pessoas que estão putas e cheias de razão por estarem em estado de putez. Gestores devem gerir pessoas, intermediando conflitos, buscando soluções para descontentamento e não intimidar os geridos para que eles engulam tudo. Essa coisa de fazer o gerido sentir que está incomodando ou sendo inadequado quando leva um problema ou se chateia é uma nova modalidade de bullying, o “bullying arco-íris”, onde você tem que estar sempre feliz sob pena de uma sensação de não pertinência artificialmente plantada. Muito cômodo gerir assim, se recusando a lidar com os problemas.

Curioso que os mesmos que oprimem com a obrigação de ser feliz são aqueles que se dizem modernões e respeitadores das diferenças. Ok, você pode ser gay, você pode ser usuário de drogas, você pode ser qualquer “diferença” que seja bem vista no modismo da vez, mas vai você ser questionador ou mais reservado, não gostar de socializar e não estar sempre em estado de alegra histérica e observe o “respeito pelas diferenças” se esvaindo no mesmo minuto. Tem que gostar, tem que sorrir, tem que sair e socializar não importa quão pau no cu você ache o compromisso da empesa. Não basta ir, tem que ir e aplaudir feito uma foca dopada.

Escorados nesse crendice idiota estilo “O segredo” e outras autoajudas risíveis o gestor sem competência a estrutura para lidar com questionamentos pertinentes e uma boa prensa do funcionário vai vomitar toda sorte de ignorâncias para se justificar: a “energia” do local não está boa (chama um eletricista então, idiota), que pensamentos negativos “atraem” coisas negativas (vamos todos pensar em dólares para ver se ficamos ricos?) e que é preciso mais alegria e “tolerância” (apesar de não respeitarem seu jeito justamente por esse discurso). O funcionário cala a boca, porque né, está em condição vulnerável, e o gestorzão fodão acha que super convenceu a pessoa do seu chorume argumentativo, quando na verdade as pessoas só estão calando a boca por intimidação.

O que estas pessoas não percebem é que se portando desta forma histérica e descompensada deixam exposta sua própria fragilidade. Pessoas borderline, que estão a um passo do abismo, por isso não conseguem suportar ou lidar com algumas verdades, queixas ou críticas, acham que ninguém se dá conta de que essa baboseira de energia e atração são, na verdade, meros justificadores sociais para calar a boca de quem lhes causa algum incômodo para o qual não estão preparados ou não tem estrutura para lidar. E, se você for inteligente, explora essa fragilidade a seu favor. Mas isso é assunto para outro texto.

Aceitar que às pessoas à sua volta estejam chateadas é aceitar um erro seu de gestão, pena que as pessoas não admitam errar nunca, não é mesmo? O digno a fazer (e o que eu sempre fiz) é colocar a mão na consciência e se perguntar (ou à sua equipe) o que você pode fazer para melhorar a vida destas pessoas. Pior coisa do mundo é fazer com que um funcionário tenha que defender seu direito a estar chateado. É feio, desrespeitoso e desumano. Não cabe julgar se há motivos válidos ou não para insatisfação, se o sofrimento é real, algo tem que ser feito, por mais que se discorde dos motivos. Qualquer comportamento que não seja nesse sentido é o mesmo que uma criança tapando as orelhas e cantando bem alto para não ouvir o que lhe está sendo dito.

Seja você um gestor em uma empresa, o gestor de uma família, de um grupo ou de qualquer modalidade de aglomerado de pessoas, não seja babaca de exigir alegria e alto astral. É patético. É desrespeitoso. É opressivo passivo-agressivo. E mostra quão despreparado você está para lidar com gestão de pessoas. Só tem valor se vier de forma espontânea, e não fruto de medo. E se isso de alguma forma é cobrado, vem na base do medo sim.

Está com problemas emocionais que te indisponibilizam para segurar o rojão de críticas, putez e reclamações? Medique-se. Vai no psiquiatra, joga a toalha, diz que não tem estrutura para arcar com todas as suas responsabilidades de gestor e toma um remedinho. Mas para de encher o saco para que todos os que estão à sua volta criem um ambiente seguro para que você não se emburaque por dentro na sua própria fragilidade e fasta de estrutura, sacanagem obrigar terceiros a fazerem a manutenção do seu emocional capenga.

Vai acontecer? Óbvio que não. Porque é socialmente aceite você querer o odioso e infantilóide “alto astral”. Soa como se fosse para o bem de todos, então, há aval social para continuar calando bocas, intimidando, oprimindo em nome da alegria. Fanáticos da felicidade, Xiitas da empolgação, terroristas da energia positiva, desde que para terceiros, pois eles, quando se emputecem, não praticam essa política arco-íris. Em resumo, hipócritas.

Saudades dos tempos onde a obrigação de ser e estar sempre feliz se restringia a redes sociais. Essa porra está invadindo a sociedade, talvez porque, cada vez mais, a sociedade venha construindo suas relações calcada nas redes sociais. Hoje não dá mais para fugir desses aleijados emocionais que precisam a todo custo emular uma felicidade perene sob pena de um surto de afundamento. O pior é que dão poderes para pessoas tão retardadas emocionais, porque nessa maravilhosa sociedade brasileira ignorante, a alegria é um dos pilares de sustentação. Lamentável.

Mais um direito que se vai. Não pode falar certas coisas politicamente incorretas, não pode falar de certos grupos minoritários, não pode fazer humor com qualquer assunto e agora não pode estar puto ou insatisfeito. Tá bem difícil manter a humanidade, ou você veste uma máscara e cria uma persona para interagir com o mundo da porta de casa para fora, ou tem que ouvir toneladas de chorume, de psicologia barata mesclada com crendices e auto-ajuda ignorante. Haja paciência, viu?

Oscilações de humor e sentimentos são normais nos seres humanos. Quem não pode lidar com isso, não pode gerir pessoas. Querer que um grupo esteja sempre feliz e “alto astral” (vou vomitar e já volto) é simplesmente patético, opressor e muito hipócrita, já que quem faz essa exigência também tem sentimentos oscilantes: “não tolero os seus, mas você trate de tolerar os meus”. E no cuzinho, não vai nada?

Para dizer que meu texto negativo drenou suas energias positivas, para dizer que é fácil estar sempre feliz quando se ganha um salário de chefe ou ainda para ensinar estratégias para lidar com hipócritas felizes: sally@desfavor.com


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