Skip to main content
Marido.

Marido.

| Sally | | 165 comentários em Marido.

Sabe aquele período infernal em que dá tudo errado e você está saturado? Pois é, aconteceu comigo. Tudo dando errado, saco cheio de tudo, mau momento. Foi quando aconteceu.

Voltava para casa do trabalho dando carona para uma amiga, dentro da lei, dirigindo dentro da velocidade permitida. Mas não é só. Comigo nunca é só. Trabalho de salto alto, mas como o Código de Trânsito proíbe dirigir com sapatos de salto alto, eu uso sapatilhas, fechadas, como manda o figurino, pois sapato com a parte traseira aberta também não pode. Deixe sempre sapatilhas no carro, porque eu sou a babaca que vive dentro da lei. Também dirijo usando cinto de segurança, usando óculos, usando tudo que a lei manda. IPVA em dia, vistoria em dia, pneus calibrados.

Estava eu no meu carro mega-correto, dirigindo, como sempre, em baixa velocidade, cagona que sou, quando, do nada, em uma curva, uma moto parada se apresenta na pista. Não deu tempo de frear, em velocidade alguma daria tempo de frear e evitar a colisão com uma moto que para repentinamente em uma curva. Mas, por estar muito devagar, o que poderia ter sido morte ou cadeira de rodas, foi um totozinho que apenas causou um tombo no ocupante da moto e avarias no meu carro.

Saí do carro imediatamente para ver se ele estava bem. Ajudei ele a se levantar. Ele parecia apressado para querer subir novamente na moto, quando ouvi o grito de dois policiais mandando que ele fique parado onde estava. Levantei o rosto e, em um segundo, compreendi o que aconteceu: uma blitz fechava a rua que vinha depois da curva.

O rapaz da moto, ao ver a blitz, freou de forma abrupta, na tentativa de dar meia volta e fugir. Tinha algo errado nele. Foi aquele procedimento padrão, pediram documento, habilitação, até que veio a pergunta: “A senhora ingeriu bebida alcoólica?”. Meu “não” deveria valer 2x mais do que um “não” comum, se tem uma pessoa que não bebe sou eu. Pode fazer um bafômetro retroativo de dez anos atrás que vai continuar dando álcool zero. Já meu colega de acidente não teve a mesma postura, admitiu que bebeu e se recusou a fazer o bafômetro.

Fiz o bafômetro, deu zero álcool e o rapaz continuou se recusando. Advogado, ele sabe muito bem que não é obrigado a produzir provas contra ele mesmo. Pelo fato de estarem duas mulheres sozinhas, o tratamento não foi dos melhores, uma série de desrespeitos se seguiram. Ao falar das avarias no meu carro e de um eventual pagamento a resposta veio ríspida “Minha moto também ficou avariada, menina, não é assim não”. Jamais seria tratada da forma como fui tratada se fosse um homem, capaz de carimbar um soco na fuça do rapaz, magrinho e de óculos.

Eu queria muito ter um tamanho razoável para dar uma surra na pessoa, mas não tenho. Tinha bebido, achei melhor não conversar naquela hora, peguei contato e fiquei esperando a liberação dos documentos sentada no meio fio e comecei a chorar de raiva. O pensamento inevitável era: se eu desse um telefonema e meu “marido” viesse ao meu encontro, o tratamento seria outro.

Um agente da blitz se aproximou e, ao me ver chorando, sugeriu que eu ligue para o meu marido, pois “nessas coisas de acidente, mulher sozinha ninguém respeita”. Disse a ele que eu não tinha um marido. Ele sugeriu que eu chame um namorado. Diante do meu sinal negativo, sugeriu um primo. É, primo eu tenho, só teria que pegar um voo internacional para me ajudar. Expliquei a ele que minha família estava em outro país e tive uma crise de choro dizendo “Moço, vou simplificar as coisas para você: eu não tenho ninguém!”. O coitado se apiedou e me passou as informações do sujeito que tinha batido em mim, coisa que ele não poderia fazer, pois eram confidenciais. Terminou dizendo “É foda, tem coisas que quando é mulher sozinha, ninguém respeita mesmo não”.

Voltei para casa, com os conselhos dele na minha cabeça “mulher sozinha ninguém respeita”. Isso me fez refletir e nasceu o texto de hoje. É horrível, mas é uma verdade da vida: no Brasil, mulher sozinha (quase) ninguém respeita em certas situações. E essas “certas situações” costumam ser complicadas o bastante para que só alguém que te ama muito compre esse barulho.

Ideologicamente é terrível se confrontar com isso. A sensação que me deu é que por mais que mulheres lutem, sejam supostamente independentes, existe um grau de respeito em certas situações para o qual sempre vamos depender de homem. Comecei a refletir sobre a minha vida e meus relacionamentos. Qual o principal fator que muda quando estou em um relacionamento? O que pesa mais de bom quando estou em um relacionamento? No fundo, por qual razão eu busco tanto relacionamentos?

Já fiquei anos sozinha, sem relacionamentos. E foi bem ruim. O motivo não era solidão ou vontade de viver um grande amor, romantismo passa longe da minha pessoa. O motivo é que uma mulher sozinha é vulnerável. Você sabe que se tudo mais der errado, não tem um respaldo necessário nas situações onde o caldo engrossa. E na cidade onde eu moro, isso frequentemente acontece, principalmente para alguém como eu, que enfrenta grandes deslocamentos e lida com todo tipo de pessoa.

Tenho que aceitar que, por mais bem resolvida que me ache, existem situações de covardia onde eu não tenho subsídios para me defender sozinha. Sim, a triste ficha que me caiu é que para algumas coisa eu dependo de homem para me defender ou para nem ao menos ser desrespeitada. Verdade seja dita, no geral, o homem atua mais de forma preventiva: só por estar lá, sua mera presença coíbe certos abusos. Se é algo só meu ou de todas as mulheres, não sei, mas tive a sensação que o principal atrativo de um relacionamento não é a massagem no ego de alguém te amar e sim a dignidade e respeito que ele gera pela presença do homem.

Obviamente o sujeito não vai pagar o dano causado ao meu carro, que foi muito caro. Ele é advogado, ele sabe bem que se eu processá-lo ele pode enrolar as coisas por anos, empurrando o problema para frente. Mais: pode até ser que depois que eu fui embora ele tenha subornado o pessoal dali e nem mesmo tenha ficado consignado que ele bebeu e freou de forma brusca para escapar de uma blitz. Se bobear, ele que me processa e eu que pago uma indenização para ele. Se eu fosse um homem de 1,90m, talvez a conversa fosse outra. Talvez ele tivesse se prontificado a pagar, por medo de levar uns tapas.

Pensei no meu último relacionamento. Se eu estivesse com ele, ele teria vindo e levado esse safado pelos testículos para um caixa 24h e feito ele sacar dinheiro para os danos causados, que por sinal, ele saberia só de olhar, por entender tudo de carro. De carro, de canos, de eletricidade, de tudo que eu não entendo. Eu não teria que lidar com esse problema, assim como ele não tinha que lidar com problemas sobre coisas que não entendia, tipo compras no mercado ou conhecimento de leis.

Lembrei também da sensação que eu tive quando começamos nosso relacionamento: eu dormia. Eu dormia tanto, que vocês não tem ideia. Um sono profundo e seguro, como há anos não dormia. Alguns chamam de “o sono dos justos”, mas para mim não era o sono dos justos, era o sono dos protegidos, da certeza que se algo que eu não soubesse lidar se aproximasse, ele lidaria para mim. Nunca mais tive esse sono desde que nos separamos. Agora eu tenho sempre um medo latente, um pequeno cu na mão perene, uma sensação de desproteção que me causa um buraquinho na alma. Se um dia surgir uma situação que dependa de intimidação física, estou fodida.

Vejam bem, com isso não quero dizer que eu era um bebê cuidado. Para ser sincera, eu cuidava muito mais do que era cuidada. Mas a complementariedade permitiu que ele me ampare em situações onde eu me sentia vulnerável, assim como eu a ele quando as circunstância se invertiam. Caindo essa ficha, comecei a repensar o papel dos relacionamentos na minha vida e, talvez, quem sabe, na vida da maior parte das mulheres.

Vejo mulheres que não estão felizes no seu casamento. Na verdade, estão bem infelizes. Mas em algum ponto, eu sinto algum tipo de inveja. Não é pelo “ter marido” no sentido de precisar do olhar do outro para se reconhecer, é por ter essa rede de segurança. Se tudo mais der errado, se elas forem vítimas de uma covardia, alguém vai tomar a frente. No meu caso, se eu for vítima de uma covardia, eu tenho que acionar o Judiciário. O que isso significa? Pagar caro, pagar taxa, pagar custas, me aborrecer, esperar por anos e provavelmente não ser atendida. Eu mais do que ninguém sei o quanto o Judiciário não resolve os problemas, como não vai resolver o dinheiro que vou gastar no meu carro. Se eu tivesse marido, talvez nem tivesse sido desrespeitada em um primeiro momento. Provavelmente não teria.

Neste país maravilhoso em que vivemos, para ter respeito, em muitas situações ainda é preciso ter homem. E daí a busca por um relacionamento ganha novos contornos. Aquilo que os homens pensam, que mulher quer sempre estar em um relacionamento por carência, não me parece verdade. Queremos paz de espírito. Queremos um amparo. Queremos o sono dos protegidos. Seja na hora de peitar um valentão que quer intimidar uma menina, seja na hora de matar aquele bicho nojento que entra na sala, um “homem” ali, por você, oferece um tipo de conforto passivo, a certeza que SE um numero de possibilidade tenebrosas se concretizarem, vem alguém te socorrer.

Eu sei, eu sei. O termo “te socorrer” é de deixar o cabelo em pé. Mas eu de tempos em tempos preciso de socorro. Não sei se sou fraca, não sei se sou frágil. Mas eventualmente tem coisas que não sei lidar: um pneu furado, um acidente de carro, uma lagartixa na sala. Não se trata apenas da resolução do problema, tem algo mais profundo aí. Um Green Card para o bem estar sabendo que a resolução em standby está ali, ao seu lado, ao alcance da sua mão. É uma segurança que acolhe a alma. Talvez não devesse me apegar tanto a ela, mas me apego, pois, como estou vendo agora, quando algo dá errado se paga caro por não ser respeitada.

Adoraria viver em um país civilizado onde uma mulher sozinha pode resolver tudo sem ser desrespeitada. Adoraria não sentir esse medo constante, represado e arquivado para conseguir continuar tocando a minha vida. Mas não é a minha realidade hoje, e queria compartilhar isso com vocês, pois acredito que não seja a realidade de muitas mulheres, mulheres estas que estão sendo injustiçadas sendo taxadas de carentes, de dependentes emocionais, de submissas por fazer concessões grandes para estar com um homem. Talvez não. Talvez elas queiram o sono das protegidas. Não julgo. Não mais.

Homens nunca saberão se a gente não contar. Um exemplo bobo: a forma como seu entorno te trata quando você é vista frequentemente com um homem ao lado, ou seja, quando se presume que você está em um relacionamento. O grau de respeito aumenta quando o entorno percebe o relacionamento. O popular da birosca não diz mais cantas grosseiras, quase ameaçadoras. O vizinho não te come com os olhos no elevador. O mecânico não tenta te roubar quando você leva o carro para a revisão. Tudo isso, Senhoras e Senhores, por um único motivo: medo de levar porrada. No fundo é isso, respeito vem do medo no Brasil.

Sim, no fundo, tudo gira em torno disso. Nunca se sabe quem é aquele homem que está ao lado da mulher. Ele pode enfiar a porrada em outro homem, pode até mata-lo. Respeito não existe, medo virou sinônimo de respeito. Respeito apenas por ser humano não existe por aqui. Respeita quem tem medo de apanhar, e como, via de regra, mulher não tem potencial para bater em um homem, alguma vezes não recebe o respeito integral que mereceria.

Existem almas boas que respeitam mulher em sua totalidade, mas existem muitos babacas que não. E nunca sabemos quando vamos nos confrontar com um deles, por exemplo, em um acidente de trânsito. Ou em uma maca de hospital, quando estivermos fragilizadas e doentes. A mulher que é vítima de violência no parto é a que está sem o marido ao lado, por exemplo, com um homem do lado dificilmente alguém se atreve.

Então, em um mundo bárbaro, onde podemos cair, por um capricho do destino, a qualquer momento na condição de vítimas de uma violência, ter um marido (marido = homem, independente de casamento formalizado) é uma garantia de que estaremos protegidas de certas violências. Não desmereçam esta garantia, ela significa muito para quem se sabe mais frágil.

Não acho justo que se cobre da mulher que ela saiba se defender de tudo sozinha. É uma incapacidade praticamente física. Quando se convive com um povo mal educado, machista e muitas das vezes psicopata, não há defesa possível. Eu jamais vou impor respeito pelo físico, seja pelo um metro e meio, seja pela cara de babaca, não vai acontecer e nada do que eu faça pode mudar isso. Também não sou filha de gente importante, não tenho poder que me faça ser temida. Ao não ser temida, sei que de tempos em tempos vou ser desrespeitada impunemente e conviver com isso me deixa frustrada.

Quem é homem não consegue mensurar a sensação de impotência, de revolta, de angustia que é ter que aceitar e interiorizar que muitas vezes isso vai acontecer e a mulher não vai poder fazer nada. Aí vem a pergunta: quem sou eu para mensurar o que é mais sofrido, o constante medo e revolta do desrespeito ou um relacionamento que apesar de falido, traga segurança? Já tive essa resposta, hoje não a tenho mais, cabe a cada qual decidir. Só aviso que o caminho de bancar tudo sozinha e eventualmente ter que engolir desrespeito e agressão é muito duro. Já havia me esquecido o quanto, por sinal.

Não é o melhor dos mundos estar em um relacionamento POR isso, mas não acho demérito que este também seja um fator. A velha fórmula agora faz sentido para mim: mulher cuida, homem protege. Medíocre? Talvez, mas acho que passaram-se os séculos e, no fundo, é a combinação que dá certo, pois é o que cada um ainda faz de melhor. Tomara, TOMARA que um dia isso mude e todos transitem em todos os papéis. Na torcida.

A lei existe para proteger os mais fracos da covardia dos mais fortes. Quando a lei é ineficiente, voltamos à lei da selva velada. É o que está acontecendo hoje. Uma mulher sozinha tem menos chances de escapar de uma covardia. Então, homens, antes de julgar a insistência da mulher de estar em um relacionamento, procurem se colocar uma vez na vida na posição de quem vive com um medo latente, constante, e o desamparo da lei. Talvez vocês, no nosso lugar, fizessem muito pior.

Para se decepcionar profundamente comigo, para se oferecer para matar lagartixa ou ainda para não conseguir acreditar que um mundo assim exista por nunca ter passado por ele na condição de protagonista: sally@desfavor.com


Comments (165)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: